sábado, 23 de dezembro de 2023
Poesia - Miúda
Paloma ruiva
terça-feira, 29 de novembro de 2022
_mArtE uM :: uMa joRnada nOs AfeTos
No filme Marte Um vivenciamos a história de uma família negra que vive na periferia de Belo Horizonte - MG.
A mãe, Tércia, é empregada doméstica, diarista, personagem emblemática da nossa sociedade de passado escravagista. Tércia é personagem com profundidade própria, individual e, ao mesmo tempo, personifica milhares de mulheres negras, como a minha mãe, que sempre estiverem presentes nos lares familiares ajudando a construir a vida social e dos afetos desse país, mesmo não tendo o mais que merecido reconhecimento tanto em termos pessoais, profissionais e sociais.
O pai, Wellington, zelador/jardineiro num condomínio de gente rica, rica em termos de dinheiro e só, é também um tipo muito bem conhecido em algumas famílias periféricas, já que costuma ser muito mais raro vermos uma figura paterna nesses contextos. Wellington até é um pai trabalhador, dedicado, afetivo, apesar disso, é marcado por uma existência de valores morais retrógradas e rígidos, Já que se mostra não atuante nos afazeres domésticos, é preconceituoso com a sexualidade da própria filha e, assim como milhares de homens Brasil afora, sofre os percalços de ter que conviver com um vício muito característico da nossa realidade: o alcoolismo.
A filha mais velha é Eunice, bolsista numa universidade federal de direito. E está naquela fase em que os valores familiares entrem em choque com a realidade de uma identidade conflituosa em construção. Ela quer ser independente mas sem perder os vínculos com a família. Quer assumir sua sexualidade sem que isso gere atritos no âmbito familiar. Gosta de Joana mas não se sente à vontade em manifestar publicamente todo seu afeto pela amada. Eunice está naquela fase de transição entre o fim da adolescência e começo da vida adulta. Uma fase de incertezas, impasses, mas também de ímpetos sonhadores e libertadores.
E temos ainda Deivinho, o filho mais novo, habilidoso e admirador de futebol, principalmente por influência paterna, cujo sonho maior é ser um astrofísico. Ele é criativo, curioso, hábil, introspectivo, adoro ver vídeos de astronomia, do Neyl Degrasse Tyson, e sonha em um dia ser um dos tripulantes da missão que pretende levar os primeiros humanos para colonizarem Marte.
Todos na família tem seus sonhos, seus medos, frustrações, anseios, desafetos, e vão sendo afetados pouco a pouco pela História política do país após a ascensão de um governo de extrema direita. Qualquer paralelo com a realidade atual (não) é mera coincidência.
Uma história sensível, tão única e particular ao retratar os percalços de uma família negra vivendo numa periferia de um estado fora do eixo rio-são paulo, mas é também uma história que nos toca pela sua universalidade ao tratar de temas caros a qualquer ser humano em qualquer perto do mundo.
Do escuro espacial de uma sala de cinema, ao acompanhar as desventuras dessas pessoas, somos convidados a uma imersão humana, cósmica até eu diria. Sofremos e vibramos com cada momento dramático ou trágico-cômico dessa jornada. A jornada de sermos os primeiros humanos a chegar a um destino tão distante que, vista de lá, a Terra nos parece menos que um "pálido ponto azul". Fomos e seremos pioneiros, sempre fomos, desde que nossos ancestrais começaram a desbravar esse planeta.
Essa será uma jornada sem volta. Tocante, emocionante, da qual certamente você não vai querer voltar. Marte Um - uma jornada nos afetos.
sábado, 24 de setembro de 2022
Fazes-me falta
Fazes-me falta, miúda
Tua presença ausência
Se faz sentir por toda a casa
Por todo canto no mundo
Para onde olho e não te vejo
Há um silêncio absoluto
Crescendo dentro de mim
Na mesma velocidade
Com que galáxias
E estrelas
Se expandem universo afora
Falas comigo e já não sou capaz de te ouvir
Ofereces-me tuas mãos sem substância
E tua boca sem brilho
E já não sou capaz de tocá-las
Ou sentir o cheiro da tua pele
Fazes-me falta
Porque tua ausência onipresente
Em todo lugar
Dentro de mim
Se projeta sombra sem corpo
Encobrindo de solidão meu ser tão frágil
Havia algo em ti que me pertencia
Uma semente informe evoluindo aos poucos
Negrume sem lume
Vazio uterino de dilatações exponenciais
A lógica retórica de uma recusa disfarçada
A vida esvaziada
De todo sentido de existência
Afeto feito fel
Derramando pensamentos desencontrados
Choros contidos de olhos fechados
Fazes-me falta e não te vejo
Evito espelhos por me lembrarem a imagem
De um homem
Sem jeito para as coisas práticas
Era tu, miúda, que me vestia
Para os rituais banais da vida cotidiana
Que me dizia a melhor combinação
Entre sapatos calças e camisas
Gravatas e meias...
Agora abro o guarda-roupas
Entre cabides em sentinela
Eu vejo um monstro indistinto
Visto-me sem convicção
Lembrando tuas palavras afiadas
Fazes-me falta
E nem mesmo a dor saudade
De ti
Me cabe mais no peito
Morrer, pequena, é deixar de sentir
E eu ainda te sinto
Ainda que não estejas mais aqui
sábado, 6 de agosto de 2022
Poetas roubam
Otto, os poetas roubam
Roubam tudo que é poesia
Eles roubam a luz da manhã
E do sol da tarde que arde fria
Os poetas roubam
Eles não sabem criar
São crianças imersas
Em palavras diversas
De versos e rimas
Poetas roubam
Esse é seu jeito de brincar
Os poetas roubam
Suspiros apaixonados
E o choro convulso
De quem se desespera
E guardam tudo em suas memórias confusas
Escrevem como se sentissem
E sentem o que não escrevem
Nunca confie num poeta, Otto
Poetas roubam
E a poesia não passa de uma coleção
De objetos e artefatos alheios
Poetas roubam
Aquele beijo doce
Roubam
Aquele grito amargo
Roubam
Aquele riso frouxo
Roubam
Aquele triste fado
Suas palavras versam sobre a Vida e a Morte -
Esta lida contínua entre a sobrevivência e a plenitude
Eles clamam "Viver é eterno!
Mas amar, amar dura só um instante"
O verso encobre a tragédia do existir
Viver sempre foi um exercício
Um jogo de amarelinha, não é mesmo Horácio
Uma brincadeira à beira do Grande Abismo
Ainda que houvesse Céu e Inferno
Entre eles também haveria de ter
muitos passos, muitas casas
Atirar uma pedra em rumo delas
é jogar-se no mundo e se arriscar
Poucos sabem ignorar a máxima suprema -
Viver é muito perigoso
Ouve! Escuta! Repara nestes versos...
É assim que eles nos roubam, Otto
Distraídos, rimam, versam, nos hipnopoetizam
Poetas... roubam
segunda-feira, 1 de novembro de 2021
Tenho caminhado pela noite
Entrando e saindo em becos de madrugadas
onde amantes se rasgam
na euforia de corpos frenéticos
A madrugada vermelho-escura geme -
é da minha boca que sai os seus gemidos
Tenho andado pela noite
esbarrando em sonhos
de balões que estouram,
pipas que não voam,
palhaços malditos
Fantasmas me assombram
e eu atônito do sentimento de medo
mesmo homem crescido
Crescer não é o mesmo que amadurecer
Frutas amadurecem suspensas em galhos:
Prontas, felizes com o salto para a Morte
Eu tenho morrido diversas vezes
e de diferentes maneiras
Viver é ter que escolher entre infinitas possibilidades
A noite inquisidora te pergunta: então, o que queres?
Você puxa o cobertor, abre um livro,
entorpece a mente
Mas a Dúvida está sempre presente
A te espreitar sem brilho nos olhos,
um riso debochado - o que queres de mim?
sussurrando teu nome baixinho
para que a força das palavras
não invoquem tua presença
Estarás dormindo? Ou também perdida em meio a pensamentos que te arrastam para uma praia vasta e iluminada
onde tudo é sombra e luz
Tenho caminhado pela noite
procurando teu nome
em paredes de concreto, frases não ditas,
choros escondidos,
como se fosse possível encontrar algo tão frágil, sensível
num mundo onde ruas acabam
em curvas sem sentido
Tenho caminhado pela noite
sonâmbulo, soturno
procurando teu nome
em lugares impossíveis
E é nessa busca perdida e malfadada
onde encontro teus olhos
me olhando distantes
a me questionar: o queres de mim?
quinta-feira, 13 de maio de 2021
Them e a representação da violência
A série Them, disponível no serviço de streaming Prime Vídeo, tem sido descrita com adjetivos como violenta, cruel, sádica, pesada, impactante, polêmica, até mesmo desnecessária e etc. Ambientado nos anos 50, a trama principal foca em uma família negra que se muda da Carolina do Norte para um bairro branco. O que poderia ser a realização de um sonho de uma família qualquer se revela logo de cara um pesadelo. Além de terem que lidar com as dores e os sofrimentos individuais, marcados por acontecimentos traumáticos, os Emorys terão que enfrentar as táticas de tortura de uma vizinhança de supremacistas brancos.
Ao longo de 10 episódios, Them se propõe a retratar de modo explícito as táticas de violência (física e psicológica) que supremacistas brancos sempre impuseram não só às pessoas negras, mas também a toda e qualquer pessoa ou grupo que eles considerem merecedoras de seu desprezo pelo simples fato de serem que são - diferentes deles.
Se a produção é, em alguma medida "violenta" é, simplesmente, porque pinta um quadro de atrocidades valendo-se de recursos narrativos que buscam refletir todo um repertório de horrores que homens e mulheres brancos (autointitulados como "bons cristãos" e puros de sangue e de raça) usaram e ainda usam para justificar seus preconceitos raciais, sociais e de gênero.
Them é uma obra audiovisual, como tal era de se esperar que seu impacto nos espectadores cause todo tipo de sentimentos e reações. Como obra pública, no sentido de que é exibida por um serviço acessível a um determinado público assinante do streaming, está sujeita às diferentes apreciações estéticas e ideológicas. A série não se propõe a ser tida como um retrato único e inquestionável para se tratar do assunto racial - assunto principal - e de outros temas subjacentes, uma vez que ela ainda traz denúncias contra os valores machistas de uma sociedade notadamente marcada pela lógica patriarcal (basta ver como as personagens femininas são tratadas pelos seus maridos, pais, vizinhos); de uma sociedade homofóbica (vide Clark) e elitista (pais da Betty). Ao tratar desses assuntos, a série evidencia todo um contexto no qual as formas de discriminação, seja racial, social ou de gênero, estão diretamente correlacionadas, pois seus mecanismos internos operam sob uma mesma estrutura de pensamento: a de segregar os diferentes e beneficiar com privilégios os que são considerados iguais.
De um modo geral, pode-se apreciar uma produção ficcional e ainda assim desenvolver um olhar crítico sobre ela, um olhar analítico que vise interpretá-la tendo em consideração os contextos sócio-históricos a que ela se refere e no qual ela é produzida e exibida.
As acusações de que Them é desnecessariamente violenta cometem, no mínimo, um equivoco de juízo de valor, seria como acusar, por exemplo, os filmes sobre o holocausto dos judeus pelos nazistas alemães de serem impactantes demais para um público que, pretensamente, deveria ser poupado de assistir a representação cinematográfica de eventos históricos de uma barbaridade difícil de ser aceita e compreendida como tendo sido empreendida por seres humanos que são iguaizinhos a nós, ainda que hajam as óbvias diferenças em termos culturais. O que deveria chocar em Them é a violência que está sendo denunciada, não a "crueza" com que se faz isso.
Seguindo a tendência de misturar o gênero cinematográfico mistério/horror com denúncia social, cujo expoente contemporâneo tem sido os filmes de Jordan Peele, a série cumpre seu papel como entretenimento, tem um bom enredo, as atuações são impecáveis, principalmente da atriz que faz a personagem Lucky Emory, tem episódios marcantes e cenas emblemáticas, e tudo isso sem abrir mão de um olhar crítico e provocativo sobre fatos da vida real.